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quinta-feira, 6 de março de 2008

CONTRATOS BANCÁRIOS - CAPITALIZAÇÃO DE JUROS COM PERIODICIDADE INFERIOR A UM ANO- MP 2170/01 vs. CF e Lei Complementar 95/1998

08:06 @ 06/03/2008

CIVIL. AÇÃO REVISIONAL. CONTRATO DE FINANCIAMENTO COM GARANTIA DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. CAPITALIZAÇÃO DOS JUROS. ANUALIDADE. ART. 591 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. INAPLICABILIDADE. ART. 5º DA MEDIDA PROVISÓRIA N. 1.963-17/2000 (2.170-36/2001). LEI ESPECIAL.PREPONDERÂNCIA.
I. Não é aplicável aos contratos de mútuo bancário a periodicidade da capitalização prevista no art. 591 do novo Código Civil, prevalecente a regra especial do art. 5º, caput, da Medida Provisória n. 1.963-17/2000 (2.170-36/2001), que admite a incidência mensal.
II. Recurso especial conhecido e provido.
(STJ, REsp 890460/RS, Rel. Ministro  ALDIR PASSARINHO JUNIOR, QUARTA TURMA, julgado em 18.12.2007, DJ 18.02.2008 p. 1)


Comentários:

                                   A primeira norma autorizadora da capitalização de juros com periodicidade inferior a um ano, a Medida Provisória             1963-17/2000      , apresentava a seguinte ementa (ou rubrica): "Dispõe sobre a administração dos recursos  de caixa do Tesouro Nacional, consolida e atualiza a legislação pertinente ao assunto e dá outras providências". Dessa forma,  aparentemente, disciplinaria especificamente matéria de cunho financeiro e de direito público.

                                         Contudo, depositou-se no corpo do ato normativo um perfeito cavalo de tróia:

"Art. 5º Nas operações realizadas pelas instituições integrantes do  Sistema Financeiro Nacional, é admissível a capitalização de juros com periodicidade inferior a um ano.

Parágrafo único. Sempre que necessário ou quando solicitado pelo devedor, a apuração do valor exato da obrigação, ou de seu saldo devedor, será feita pelo credor por meio de planilha de cálculo que evidencie de modo claro, preciso e de fácil entendimento e compreensão, o valor principal da dívida, seus encargos e despesas contratuais, a parcela de juros e os critérios de sua incidência, a parcela correspondente a multas e demais penalidades contratuais."

                                   Este vício repetiu-se na ementa da MP             2170-36/2001      , que "dispõe sobre a administração dos recursos de caixa do Tesouro Nacional, consolida e atualiza a legislação pertinente ao assunto e dá outras providências.”. Com idêntica redação, o artigo 5º desta Medida Provisória autorizou a capitalização de juros com periodicidade inferior a um ano.

                                   De acordo com essa moldura jurídica, o v. acórdão do Superior Tribunal de Justiça aqui comentado restringiu-se ao exame da relação entre a norma específica criada pelas referidas medidas provisórias e a geral contida no Código Civil. Referiu, expressamente, o princípio interpretativo consagrado no artigo 2º, parágrafo 2º, da Lei de Introdução ao Código Civil, prevalecendo a seguinte conclusão:

“Tem-se, assim, que a partir de 31.03.2000 é facultado às instituições financeiras, em contratos sem regulação em lei específica, desde que expressamente contratado, cobrar a capitalização dos juros em periodicidade inferior à anual, direito que não foi abolido com o advento da Lei n. 10.406⁄2002”.                  

                                   Entretanto, é importante advertir que a constitucionalidade e legalidade das referidas medidas provisórias não está imune a outras críticas.

                                   Principia-se pela sub-reptícia conduta do Poder Executivo de embutir, nos textos das citadas MPs, uma norma de direito privado, logo, assunto totalmente estranho ao objeto delas.

                                   O imperativo da boa-fé, como se sabe, não se  restringe ao Direito Privado. Na verdade, é no Direito Público que sobreleva sua função orientadora e corretiva, pois, de outro modo, seria impossível conceber a moralidade administrativa, princípio indissociável da atividade pública. O desvio de finalidade e o abuso de poder não podem ser tolerados.

                                   No plano constitucional, vale lembrar que a Medida Provisória             2170-36/2001       é alvo da ADI n.º 2.316-1, inicialmente relatada pelo  aposentado Min. Sidney Sanches, com dois votos proferidos no julgamento da medida liminar.

                                   Nesse ponto revelam-se muito relevantes as questões sobre a ausência do requisito constitucional da urgência e da espécie de ato normativo exigido para o trato desta matéria.
           
                           O Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no julgamento  do Agravo Regimental n. 7.207.982-6/01, da 22ª Câmara, relatado pelo eminente Desembargador Andrade Marques, deixou assentado:  

“Ora, é claro que a capitalização composta é tema específico do Sistema Financeiro Nacional, logo, por força do artigo 62, parágrafo 1º, inciso III, da Constituição Federal, medida provisória não pode tratar de matéria que exige lei complementar, como dispõe o artigo 192, da Ordem Financeira (com a redação dada pela EC-40/2004).

O artigo 5º da Medida Provisória 2.170-36, de 23 de agosto de 2001, é inconstitucional, na medida que o Poder Executivo extrapolou a permissão constitucional e tratou de matéria antiga, sem qualquer tipo de urgência. Não se pode chamar de urgente dispositivo que aborda matéria há muito discutida e que foi enxertada na medida provisória que cuida de tema totalmente diverso.”
           
                                   Bastante clara a dupla inconstitucionalidade formal, haja vista a inexistência dos pressupostos para a edição de medida provisória e a reserva de lei complementar no que tange à regulação do Sistema Financeiro Nacional.
                      
                                   No campo normativo infraconstitucional, a Lei Complementar n.º 95, de 26 de fevereiro de 1998, veio a lume para pôr cobro a esse tipo de abuso do legislador, assim dispondo:

“Art. 7º -  O primeiro artigo do texto indicará o objeto da lei e o respectivo âmbito de aplicação, observados os seguintes princípios:

 I - excetuadas as codificações, cada lei tratará de um único objeto;

II - a lei não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão;

III - o âmbito de aplicação da lei será estabelecido de forma tão específica quanto o possibilite o conhecimento técnico ou científico da área respectiva;

IV - o mesmo assunto não poderá ser disciplinado por mais de uma lei, exceto quando a subseqüente se destine a complementar lei considerada básica, vinculando-se a esta por remissão expressa.” (grifamos).

                                   A vedação aplica-se também às medidas provisórias, ex vi do parágrafo único, do artigo 1º, da referida lei.
                                              
                                   Não é permitido olvidar-se que, assim como a Lei de Introdução ao Código Civil, a Lei Complementar 95/1998 caracteriza-se como norma de supradireito, reguladora da própria atividade normativa.

                                   Destarte, a desobediência à lei complementar instala crise de legalidade, seja pela sua hierarquia, seja pela própria finalidade.
                                              
                                  Com o devido respeito, nem mesmo a regra do artigo 18, das Disposições Finais, poderia ser objeto de interpretação literal, como se a Lei Complementar 95/1998 se reduzisse à mero conselho, com o que estariam legitimados o desvio de finalidade  e a má-fé estatal, além de subtrair-lhe a força normativa. Não se cuida neste caso de descumprimento, mas sim de respeito ao ordenamento jurídico e da preservação de sua unidade.

                                   Por isso, com acerto, o Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, ao apreciar a Apelação Cível n.º 7.102.602-1, relatada pelo eminente Desembargador Roberto Bedaque, afastou a eficácia da MP             2170-36/2001      , conforme destacada motivação:

“A previsão legal foi inserida em legislação destinada a outro fim, conforme se verifica no respectivo preâmbulo, o que viola o disposto no art. 7o, inciso II, da lei complementar n. 95/98, editada em cumprimento ao art. 59, parágrafo único, da Constituição Federal e aplicável às medidas provisórias (art. Io, parágrafo único).

Nessa linha de raciocínio, a autorização para a cobrança de juros capitalizados é ineficaz, pois contraria lei hierarquicamente superior, à qual deveria subordinar-se, violando o princípio da legalidade (cfr. Vicente Ráo, O direito e a vida dos direitos, Editora Resenha Universitária, 19781, vol. I, tomo II, p. 263). Como a lei complementar sobrepõe-se à ordinária e, obviamente, medida provisória, estas não podem contrariar suas disposições (cfr. Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de direito civil, vol. I, Forense, 2a ed., p. 69).”
                                              
                                        Em síntese, à luz dos fundamentos acima oferecidos, e sempre com o máximo respeito, não merece prevalecer a conclusão abraçada pelo v. acórdão do RESP 890.460-RS, que aplicou, d.v., norma inconstitucional e nitidamente violadora da hierarquia legal,  exemplo sem igual de malícia no exercício do poder de legislar.

(LFPF)

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